Eu já disse e volto a repetir: a turma da bufunfa é a grande praga do mundo contemporâneo. Nada e ninguém consegue superá-la ou mesmo igualar os seus feitos destrutivos. Desde 2008, o estrago provocado por essa confraria atingiu proporções inimagináveis, principalmente nos países desenvolvidos e na periferia emergente da Europa. A Irlanda, completamente quebrada e arruinada, é a última vítima dos desmandos financeiros.
Na raiz da crise mundial está a hipertrofia do sistema financeiro nas décadas recentes. Os fluxos de capital, os movimentos financeiros e os ativos dos bancos aumentaram dramaticamente como proporção da atividade produtiva e das transações comerciais. Grande parte dessa atividade financeira ocorreu à margem da regulação e supervisão por parte dos governos e bancos centrais.
A Irlanda é um dos casos extremos. Lá, os ativos do sistema bancário correspondem a quase cinco vezes o tamanho do PIB do país. Nessas condições, uma crise bancária é capaz de arrasar a economia do país e as finanças públicas. E foi o que aconteceu.
A hipertrofia financeira não é um fenômeno estritamente econômico (não existem, aliás, fenômenos estritamente econômicos). Junto com o peso econômico aumentou o peso social e político dos bancos e de outras instituições financeiras privadas. Evidentemente, uma coisa alimentou a outra.
Governos, partidos políticos, parlamentares, mídia - todas essas esferas ficaram sob a influência de Wall Street e suas contrapartes no resto do mundo. Produziu-se enorme concentração de renda e de poder. Jovens executivos de bancos, muitos deles despreparados, passaram a dar as cartas em grande parte do planeta. Circularam por toda a parte vendendo ilusões e pirâmides especulativas.
Essa hipertrofia do poder financeiro é, diga-se de passagem, uma dimensão de um fenômeno muito mais amplo, identificado por Nelson Rodrigues, como "o triunfo do idiota". O destino de sociedades inteiras passou para as mãos de uma geração de empresários e lideranças sem visão e sem escrúpulos. O mais grave é que quase todos os países desenvolvidos permitiram essa especulação desenfreada. Não é por acaso que a economia mundial atravessa crise tão profunda e prolongada.
Digito essas frases e paro. De repente, percebo que estou usando, aqui e ali, um tom e uma ênfase inapropriados para uma coluna de jornal. Desculpem. Volto à Irlanda.
Os dados macroeconômicos irlandeseses parecem saídos diretamente da ficção científica. A recapitalização dos bancos exigiu gastos equivalentes a nada menos que 20% do PIB! O déficit público deve alcançar o valor estarrecedor de 32% do PIB em 2010. Calcula-se que a relação entre a dívida pública e o PIB, que era da ordem de 25% antes da crise, chegue a cerca de 100% neste ano. Tudo isso depois de um ajuste fiscal feroz em 2009 e 2010 (muito elogiado por outros países).
A tentativa de socorrer os bancos, desde 2008, quebrou o Estado. Os bancos irlandeses eram grandes demais para falir e grandes demais para serem salvos pela Irlanda. A única saída foi pedir apoio à União Europeia e ao FMI.
Os irlandeses passam momentos terríveis. A economia foi atingida por uma recessão de rachar quarteirão desde 2008. O nível de atividade vem caindo há nove trimestres consecutivos. A economia sofre uma tendência à deflação, com o nível geral de preços ao consumidor caindo em 2009 e 2010. A taxa de desemprego triplicou, aproximando-se de 14%. Não há recuperação à vista.
É o preço que se paga por confiar demais na abertura financeira, nos bancos e nas finanças globalizadas.
Publicado no jornal “0 Globo”em 27 de novembro de 2010
Paulo Nogueira Batista Jr. é economista e diretor-executivo pelo Brasil e mais oito países no Fundo Monetário Internacional, mas expressa os seus pontos de vista em caráter pessoal.
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